sábado, 29 de janeiro de 2011

As orquídeas de Horta

Por Gustavo Miranda

A mídia escrita é um meio responsável por causar enorme influência na população. Os jornais, as revistas, os livros e a Internet formam a opinião e moldam a cabeça de milhares de pessoas. Os autores que neles escrevem têm a grande oportunidade de passar informações úteis e corretas ao público. Porém, não é sempre que isso acontece, principalmente quando se entra no campo da ciência.

No dia 26 de dezembro de 2010 saiu uma crônica no jornal O Globo de Luiz Paulo Horta com o título “Sobre a existência de Deus” (http://sergyovitro.blogspot.com/2010/12/sobre-existencia-de-deus-luiz-paulo.html). O autor é jornalista, crítico musical e ocupa cadeira na Academia Brasileira de Letras. Porém, ao que parece, seu vasto conhecimento sobre música e literatura não se estende ao campo da biologia, em especial a Biologia Evolutiva.

Nessa crônica o autor trata muito superficialmente da histórica discussão entre Ciência versus Religião. Porém, aqui o foco principal não será esse tema, mas sim o que diz respeito a essa passagem de seu texto:

“Pense em certas manifestações da natureza – por exemplo, o mundo das flores. A mim, pessoalmente, emociona e deslumbra o verificar que em cada flor, alguém ou alguma coisa estava em busca da perfeição. Em todas elas, sem exceção, vê-se a procura do detalhe que, segundo Goethe, traía a presença do gênio. Nenhuma delas – muito menos a orquídea – dá impressão de ser fruto do acaso, o resultado de uma série de adaptações. E o que você pode dizer de uma aplica-se a dezenas, a centenas, a milhares. Nessa espantosa proliferação de beleza, não há algo a mais do que o acaso? Mas se, daí você quiser extrair uma verdade científica, fracassará lamentavelmente. Porque o cientista quererá discutir flor a flor; a cada uma, aplicará métodos de raciocínio que se afastam de uma intuição generalizante.”

O mundo das flores citado pelo autor, assim como qualquer outro reiclip_image002no da natureza (dos animais, dos fungos, das bactérias, dos protozoários, dos vírus) está submetido ao mesmo processo de sobrevivência, que é a seleção natural. Talvez qualquer pessoa com a mínima sensibilidade, se emociona ao observar os detalhes das flores de uma orquídea, e um conhecimento um pouco mais profundo em evolução consegue explicar as inúmeras adaptações que sua flor passou e passa até atingir tal forma. Como exemplo, tem-se o fenômeno da ressupinação, que é muito comum na família Orchidacea chegando a ser considerada uma das características diagnósticas do grupo.

Ressupinação é o fenômeno no qual os botões florais das orquídeas fazem um giro de 180º no eixo do pecíolo, como mostra o desenho B da figura ao lado. Isso faz com que a pétala que estava na região dorsal vá para a região ventral. Quando os botões se abrem, essa pétala (que é chamada de labelo) revela sua coloração diferenciada e vistosa, o que atrai insetos que polinizam as flores.

Apesar de ainda não existir nenhuma sugestão formal, pode-se pressupor o processo pelo qual a ressupinação surgiu. Provavelmente havia uma população de orquídeas ancestrais que floresciam normalmente, sem sofrer rotação alguma de seu eixo. Considerando que a coloração chamativa do labelo já existia, em algum período durante o processo evolutivo da planta, surgiu, de forma aleatória, uma mutação que fez com as flores de parte da população realizassem um pequeno giro, expondo a coloração chamativa da pétala mais que as outras da população. Aquelas que chamavam mais atenção dos polinizadores tiveram maior sucesso que aquelas que não chamavam tanta atenção, uma vez que eram mais polinizadas e deixavam maior quantidade de descendentes. Logo, essa característica se espalhou pela população se tornando comum. Porém, rotações cada vez maiores surgiram durante o processo evolutivo dessa família, fazendo com que as que expunham mais a coloração chamativa, atraiam mais polinizadores e obtinham maior sucesso reprodutivo. E isso foi ocorrendo até as pétalas alcançarem a conformação que conhecemos hoje. E não para por aí.

clip_image004Muitas espécies de orquídeas além de ter coloração vistosa, produzem odores que confundem seus polinizadores ao produzir cheiro igual ao da fêmea, como a Ophrys speculum (figura ao lado). O macho, atraído pelo feromônio extremamete parecido com o da fêmea, parte para seu encontro. Ao chegar no local de origem do odor, ele copula com a flor polinizando a planta. Aplicando o mesmo raciocínio que na ressupinação, o odor parecido com o da fêmea do besouro produzido pela Ophrys speculum provavelmente surgiu ao acaso, e aquela planta com maior atrativos para os polinizadores obteve maior sucesso que aquelas que não produziam. Daí em diante o processo continuou até surgir populações que produziam o feromônio mais semelhante com o original.

Com isso, percebe-se que o que se aplica a um gênero de orquídea, como a ressupinação, se aplica a todos da família, uma vez que essa foi uma característica que surgiu no ancestral e se espalhou por todos os descendentes. Dessa forma, não há a necessidade de se “explicar flor a flor”, como disse o autor, já que a quantidade de gêneros e espécies de uma família pode chegar a dezenas ou centenas. De fato, cada espécie traz consigo uma história particular de sua trajetória evolutiva, como no caso da Ophrys speculum. Mas, de forma geral, Darwin deixou muito bem explicado para aqueles que tivessem o interesse em descobrir como surgiu toda diversidade que hoje conhecemos, que não existe melhor intuição generalizante que a seleção natural.

Referência Bibliográfica

Fischer et al, 2007. Evolution of resupination in Malagasy species of Bulbophyllum (Orchidaceae).Molecular and Phylogenetics and Evolution 45, 358-376.

Sugestão:

McGinley, 2003. The co-evolution of a beetle and a plant. DNA evidence shoes suvival of ancient association. Agricultural Experiment Station Research Report, 14-15

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